Devaneios de Quinta #04

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Imagem: Unsplash
Devaneios de Quinta é uma categoria do blog onde eu posto contos, crônicas, diálogos e opiniões sobre os mais variados assuntos, sempre às quintas-feiras.

[Conto] Impenetrabilidade

“Você merece ocupar espaço no mundo”.
Foi a última frase que ouvi de seus lábios antes de me dizer adeus. O ar estava morno naquele dia de Outubro; tão denso que dava pra sentir o gosto. Lembro de ver sua silhueta parada próximo à porta, o crepúsculo já tomando conta do cômodo, tornando aquela cena mais melancólica do que deveria. Malas feitas às pressas se apoiavam na parede ao seu lado, contendo tudo o que um dia você já dividiu comigo.

Lembro de te perguntar o motivo, e você ter me dado como resposta apenas um olhar cansado. Lembro de sentir uma dor tão intensa, como se eu tivesse levado um soco no peito e ele latejasse sem parar. Eu não entendia o que tinha acontecido. O que eu disse? O que eu não disse? O que fez você jogar todas as palavras doces e os momentos bons no lixo?

Fiquei assim, no escuro, e isso quase me matou. Tentei recapitular os dias felizes, reviver na memória os que nos causaram sofrimento, e só piorava ainda mais a minha dúvida. Só me dilacerava mais, corroía cada pedaço meu como ácido. E a dor não ia embora.

Eu parei de comer. Naquele exato momento. Fiquei alguns dias vegetando, vivendo no piloto automático. O telefone tocava e eu não tinha forças para me levantar e atender. As cartas estavam empoeiradas e amontoadas, após constantemente serem empurradas por baixo da porta. Eu perdi a vontade de viver, e meu Deus, como me arrependo. Me arrependo de permitir que você me tenha me afetado daquele jeito.

Eu te odiei tanto! Eu odiei cada “eu te amo” que um dia já me disse, cada sorriso, cada toque… Como você teve a coragem de me dizer que eu não era um desperdício de oxigênio, que era importante, que minha existência era válida, e simplesmente ir embora? Como conseguiu aos poucos absorver pedaços de mim, incorporá-los a você, e depois sair sem nem ao menos me dar uma explicação?

Infelizmente, hoje eu sei. Hoje eu sei o que você fez e porque fez. Me deixou com essas suas últimas palavras porque eram verdadeiras, e totalmente contrárias ao que você sentia sobre si mesmo. Não pense que eu não percebi, que eu ignorei os sinais. Eu vi sua luz se apagar devagar, porém, pensava que eu era a causadora. E você tirou este fardo de mim ao dizer aquelas fatídicas últimas palavras.

É estranho que ainda hajam resquícios no rio. Uma visão desesperadora à qual tento não me agarrar. Algumas roupas encharcadas na margem, até uma das malas se encontra próxima às pedras. Disseram que foi rápido, o impacto por si só já fez grande parte do trabalho. Mas, parada aqui nesta ponte, que não possui mais do que 15m de altura, acho difícil acreditar. Você não sabia nadar, e com certeza isso foi determinante para que alcançasse o seu objetivo.

Obrigada pelas palavras, por tentar diminuir o sofrimento que viria a seguir. Eu mereço ocupar espaço no mundo. E por mais que digam que isso não é possível, daria tudo nessa vida para que você ocupasse esse espaço comigo.



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